terça-feira, 29 de setembro de 2009

sem potes de ouro


foto: arco iris/coda- flickr/Gulliver

então era assim: nada do que eu havia dito, nada do que eu havia feito, nada do que eu havia sonhado, em noites mal dormidas, tinha mais importância. A coisa era assim: seca. árida. sem elegância, delicadeza ou vaselina: no soco e na marra. Na tora. A coisa é assim, então ficamos assim: eu não ligo você não telefona, fica o dito pelo não dito e o bendito pelo maldito: e deixamos rolar as mágoas e naufragar as águas que já não movem moinhos. Agora sei que o buraco é muito mais embaixo e, saca, as coisas acontecem assim, de repente, de repente o tempo passou-sabe? De repente mesmo, eu nem havia percebido que meus cabelos ficavam escassos, que meus olhos perdiam o viço, é catarata diziam-me maldosamente é a idade: a síndrome do PVC, a crise da DNA, o susto da idade que, de repente, chegou e se instalou: e eu nem havia percebido que a barriga- é barriga de chope, eu já me dizia há algum tempo atrás- bastam umas flexões, um tempo na academia e tudo se reconstitui- até a tatuagem anda flácida- os peixes e lagartos antes ostentatórios de tanta vaidade hoje estão assim estranhos, deslocados até. Foi de repente que eu saquei que o tempo passa, velho, e que não há jeito de segurar aqueles piercings aqueles brincos na orelha ah e essas rugas eu não tinha essas rugas e esses esgares no rosto não a gente não era assim mas o tempo passa e traz com ele toda uma nova gama de sensações e sentimentos inclusive quanto ao nosso corpo e nosso culto à forma mãe prá onde é que correm os barquinhos de papel que eu jogo na enxurrada acho que é para o rio e do rio mãe prá onde vão acho que vão para o mar e o mar mãe é longe ou perto daqui ah filho é muito muito longe daqui o mar é grande é maior que o nosso sonho e o barquinho do mar prá onde é que vai mãe ah filho aí já não sei eu nem conheço o mar e olha que já tenho mais de cinqüenta anos e eu ficava ali mineiramente pensando caladinho que que era esse mar tão falado e tão pouco conhecido nem mãe sabe dele já pensou? E a gente cresceu e viu o mar, uma vez, duas vezes, muitas e muitas vezes e o mar nunca perdeu aquele encanto primordial... o mar, aquela imensidão aquela grandeza ah então é prá ali que iam todos os meus barquinhos de papel que eu jogava na enxurrada e dali mãe acho que já descobri os barquinhos viram colares e vão enfeitar as cabeças de nossa senhora e de deus eles buscam os colares que se formam nas cachoeiras dos rios e na virada do mar o mundo não é redondo mãe ai menino deixa disso que coisa mais sem pé nem cabeça e eu sonhava e eu sonhava com aquele mar aquele mar que tantos anos depois era uma paisagem emoldurada à minha frente, da sacada do apartamento...epa, divaguei e divagando estou ainda eu flanava no tempo ah esse senhor ou ele é um menino ou um bebê? senhor senhor o que é senhor? O que sou eu, hoje, com tanto tempo já passado e tanta vida já vivida será que é só isso esta total falta de perspectivas quando se chega ao tempo do fruto maduro e que a gente tem as portas da percepção muito mais aguçadas olha meu corpo aos poucos se entrega ao ócio físico mas minha cabeça é um turbilhão: minha cabeça é cheia de buracos negros buracos de verme estrelas vermelhas estrelas anãs é um big bang constante é um universo paralelo em ebulição e em evolução e eu penso e eu divago e eu imagino e eu costuro idéias e conceitos e esta tela de computador e este teclado me incitam me excitam me inspiram e me piram: e me acho ainda jovem jovem e sinto que a vida é muito mais do que esperas vãs: é tudo aquilo que acontece enquanto você faz planos já dizia o John ai ai ai cadê? Cadê aqueles velhos sonhos da juventude as batas indianas os incensos e os chás e a comida macro e Gal cantando vapor barato e os psicodelirios e as alpercatas e todos os caminhos e descaminhos da gente que buscava sonhos nas curvas da estrada e e nas areias das praias e retiros espirituais ei vamos hoje lá prá arembepe bicho vamos curtir um som paz e amor e a vida rolava calma e clara e plena de vontades e desejos desejos e rolações pirações camas feitas e desfeitas rede coqueiros e avatares mares e marés e maresias....ilhas de ilusão bem sei eu hoje aqui sentado penando em tudo aquilo que foi e que passou- e este teclado louco me clamando, me xingando, me incitando e excitando recitando versos estas teclas estão vivas lembro-me do almoço nu e das loucas viagens de burroughs e dos delírios e(s)tílicos ei eu restava falando do fim lá no principio: sim, do fim, assim seco, assim ríspido, assim brusco, assim tosco: o fim, sem alvíssaras, sem aleluias, sem handels ou heróicas, sem bethoveens ou árias de Bach: a indesejada das gentes agora deu-se a visitar meus grupos de amigos e amigas e deu-se a mostrar as caras- a insidiosa, fatídica e inesperada anda cortando e riscando do mapa gentes de quem gosto muito: e assim, secamente, de doenças ou acidentes ela vai levantando vôo e carregando almas a quem eu quis muito bem: e eu fico me perguntando: será que os sonhos, as memórias, as idéias e as metáforas todas são como aqueles meus pequenos barquinhos de papel das enxurradas e vão todos parar no colo de Deus? ou tudo não é uma grande comédia e acaba ali- no fim da chuva, sem potes de ouro no arco-íris?

2 comentários:

Adriana Godoy disse...

Danilo, um texto tão lúcido acerca da passagem do tempo, da morte que chega e leva nossa gente querida, essas dores vividas e e sentidas e a gente se sentindo ainda jovem,apesar das tatuagens desbotadas e as lembranças tantas de uma época em que era possível sonhar de verdade e viajar nos vapores baratos e não sei se há alguma coisa além da chuva, do arco-íris, mas a gente vai caminhando e tentando não morrer ainda. Ainda há coisas pra se fazer(?) e mesmo sabendo que não estão lá, a gente corre atrás dos potes de ouro e os barquinhos vão e a vida vem todo dia até os olhos se fecharem de vez. Lindo texto, lindo e comovente. beijo.

nina rizzi disse...

nossa, danilo. é isso mesmo. exatamente o que grito em todos telefones e prosas e no que fica entalado e s´po a privada sabe. só a dor terrível vesicular - psicossomatica, sabem...

fica assim e foda-se. merda!

hm. gosto de me ler aqui. isso é que é literar: externar o comum. lindo, danilo.

um beijo.